sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Pastor Amoroso

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as coisas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Pe. Antonio Vieira

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira, embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhes os defeitos, enfastia-lhes o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.

Pe. Antonio Vieira
(1608-1687)

Je T'oublerai

Que mes draps se souviennent de nos matins livides
Que le sang de mes veines se fige ou bien se vide
Que mes doigts ne retiennent que l'odeur de ta peau
Que mon corps t'appartienne bien au-delà des mots
Je t'oublierai, je t'oublierai, je t'oublierai
Je t'oublierai, je t'oublierai
Que tout autour de moi se souvienne de toi
Je t'oublierai, je t'oublierai
Que mes pieds se souviennent du sable où tu marchais
Que ta voix me revienne dans un supermarché
Que la télévision me renvoie ton regard
Qu'on appelle ton prénom dans un aérogare
Je t'oublierai, je t'oublierai, je t'oublierai
Je t'oublierai, je t'oublierai
Que tout autour de moi se souvienne de toi
Je t'oublierai, je t'oublierai
La lune et le soleil se souviendraient de toi
Comment veux-tu que moi tout à coup je t'oublie
Même si dans mon sommeil je te touche, je te vois
Je ne reconnais pas le jour d'avec la nuit
Je t'oublierai, je t'oublierai, je t'oublierai
Je t'oublierai, je t'oublierai
Que tout autour de moi se souvienne de toi
Je t'oublierai, je t'oublierai
Rien ne s'ra plus pareil après t'avoir aimé
Je ne reconnais pas les lieux où l'on allait
Tes yeux ont mis le feu à mes rêves, mes envies
Et tu as détourné la ligne de ma vie
Que les néons des villes te donnent rendez-vous
Dans des bars où les filles sont pareilles partout
Et que les grands murs blancs de mon appartement
Se referment sur moi comme un cinérama
Je t'oublierai, je t'oublierai, je t'oublierai
Je t'oublierai, je t'oublierai
Que tout autour de moi se souvienne de toi
Je t'oublierai, je t'oublierai
Je t'oublierai, je t'oublierai, je t'oublierai

terça-feira, 31 de março de 2009

Alone

From childhood's hour I have not been
As others were — I have not seen
As others saw — I could not bring
My passions from a common spring —
From the same source I have not taken
My sorrow — I could not awaken
My heart to joy at the same tone —
And all I loved, I loved alone —
Then — in my childhood in the dawn
Of a most stormy life — was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still —
From the torrent, or the fountain —
From the red cliff of the mountain —
From the sun that 'round me roll'd
In its autumn tint of gold —
From the lightning in the sky
As it passed me flying by —
From the thunder, and the storm —
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)
Of a demon in my view.

Desde o tempo da infância eu não costumava ser
Como eram os outros – Eu não costumava ver
Como os outros viam – não podia extrair
Minhas paixões da mesma fonte.
Da mesma origem não tomei
Meu sofrimento - Eu não podia elevar
Meu coração a se regozijar solidário;
E tudo que amei, amei solitário.
Então – na infância – no início
De uma vida tormentosa – foi delineado
De cada âmago do mal e do propício
O mistério que me manteve conectado -
Da corrente ou da nascente -
Da vermelha escarpa do monte -
Do sol que me envolveu totalmente
Em sua tinta de ouro outonal –
Do relâmpago no céu
Que por mim passou voando –
Do trovão e do temporal,
E da nuvem que se formou
(Mesmo estando o Céu azul)
Como um demônio em minha visão.

Edgar Allan Poe
(1809-1849)

Aguardava tua chegada...


Despir um corpo a primeira vez é um acontecimento entre dois deuses. Não se pode profanar o instante. E os amantes devem manter o ritmo dos altares. Porque, embora nesses rituais haja sempre panos e trajes para agradar ao olimpo, é para a nudez total que o céu nos quer arrebatar.As mãos têm um compasso certo. Um andante ou largo de Bach nos gestos, compondo a alegria de homens e mulheres. As mãos, sobretudo, não podem se apressar. Com os olhos têm de aprender e, com a ponta dos dedos contemplar os acordes que irão surgindo quando, peça por peça, o corpo for se desvestindo ao pé do altar.Antes de se tocar com as mãos e os lábios, na verdade, já se tocou o corpo alheio com um distraído olhar sempre envolvente. E ninguém toca um corpo impunemente. Despir um corpo a primeira vez não pode ser coisa de poeta desatento colhendo futilmente a flor oferta num abundante canteiro de poesia. Nem pode ser coisa de um puro microscopista que olhe as coisas sabiamente. Se tem de ser de sábio o olhar, que seja do botânico, porque esse sabe aflorar em cada espécie o que cada espécie tem de mais secreto ou distante, o que cada espécie saber dar.Despir um corpo a primeira vez é conhecer pela primeira vez uma cidade. E os corpos das cidades têm portas para abrir, jardins de repousar, torres e altitudes que excitam a visitação. Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque não mais suportam a sede e a fome de amar. As cidades têm limites e resistência, e como o corpo, querem alguém que as habite com intimidade solar. Gêngis-Kan, Átila ou qualquer conquistador vulgar têm com as cidades e corpos uma estranha relação. O objetivo é a devassa e a dominação. Conquistada a cidade, a ordem é marchar.Por isso, cuidado para não se acercar do outro apenas com esse olhar guerreiro ou com esse olhar tolo de turista. O turista, embora procure os sabores típicos, é um voyeurista que só quer fotografar. Mas há turistas e turistas, e o pior turista é aquele que olha sem olhar. É um perdido marinheiro que está preso em algum porto, que não se permite num outro corpo inteiramente desembarcar.Quando os corpos se tocam por acaso, como se estivessem indo em direções diferentes, o que ocorre é desperdício. Não se pode tocar um corpo impunemente. E para se tocar um corpo completa e profundamente num dado instante, os corpos têm que convergir. E convergir com uma lua diferente. A descoberta do outro é isso, é convergência.Despir um corpo a primeira vez é como despir um presente. Por isso não se pode desembrulhá-lo assim às pressas, embora a gula nos precipite afoitos sobre a pele oferta. Não se pode com mãos infantis descompassadas ir rasgando invólucros, arrebentando cordões com a gula que as crianças só têm nas confeitarias antes da indigestão.Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais do que ir a primeira vez a Europa. Pode ser ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do desconhecido. É descobrir na pele alheia mais que a pele dele, a nossa pele índia. E volto àquela imagem: despir um corpo a primeira vez é tão marcante quanto a vez primeira que um mineiro viu o mar.Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nesse exercício coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato, quando os dedos vão descendo botões e beijos e rompendo presilhas das carícias. Despir um corpo a primeira vez não é coisa para amador. Só se o amador for amador da arte de amar. Porque o corpo do outro não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de que algo nele somou, que ele é um objeto luminoso que a outros deve iluminar.Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos resistentes se partem quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca com a generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre para amar.

Affonso Romano

quinta-feira, 26 de março de 2009

A palavra foi feita para dizer...

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Graciliano Ramos - 1948
(1892-1953)

A medida da paixão

É como se a gente não soubesse
Pra que lado foi a vida
Por que tanta solidão
E não é a dor que me entristece
É não ter uma saída
Nem medida na paixão

Foi, o amor se foi perdido
Foi tão distraído
Que nem me avisou
Foi, o amor se foi calado
Tão desesperado
Que me machucou

É como se a gente pressentisse
Tudo que o amor não disse
Diz agora essa aflição
E ficou o cheiro pelo ar
Ficou o medo de ficar
Vazio demais meu coração

Foi, o amor se foi perdido
Foi tão distraído
Que nem me avisou
Foi, o amor se foi calado
Tão desesperado
Que me maltratou

Lenine